Educação em Direitos Humanos

Bernardo G. B Nogueira, Emerson Luiz de Castro (Orgs.)

Categorias: Cartilhas, Direitos Humanos

EDHUCAR. Escrevo a palavra na folha branca do papel. Está errado, seus olhos de leitor me dizem. Leia de novo, eu peço. Está errado, você insiste. Há uma letra a mais, você argumenta. Tente, eu peço. Esforce-se por outra leitura. Trata-se de um acréscimo, você reconhece. O que e quem podem estar se acrescentando à histórica palavra EDUCAR,
quando ela se apresenta acrescida desse “H”?

EDUCAR é um verbo. Os gramáticos diriam que verbo é a classe de palavras que, do ponto de vista semântico (o significado), contêm noções de ação, processo ou estado, e, do ponto de vista sintático (a posição na frase), exercem a função de núcleo do predicado das sentenças, ou seja, os verbos, por um lado, designam um fazer ou acontecer e, por outro, são o núcleo do que se diz.

O substantivo correlato ao verbo é EDUCAÇÃO. Sua origem é latina. Vem de educatio. O surgimento do verbo educar e do substantivo educação data do século XVII, com o significado de processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança. Mas os gregos, desde a Antiguidade, usavam uma palavra para designar esse processo: paidéia. Este termo, traduzido hoje como educação, está ligado à raiz da palavra pais que, em grego, significa criança. A paidéia consistia em ensinar à criança a ler, desenhar as letras, algumas questões de ordem filosófica e, sobretudo, uma educação esportiva. Mas como era próprio da época, a paidéia somente se destinava aos meninos que, por consequência, eram os únicos que podiam se tornar cidadãos e participar da vida política. As meninas não podiam receber esta educação e, por óbvio, não se tornavam cidadãs. A educação foi, pois, em sua origem, excludente e discriminatória.

Não por pura coincidência, somente muitos séculos depois, a palavra educação viria à tona, no século XVII, no cenário que prepararia a promulgação francesa da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, um documento inspirado nos pensamentos dos iluministas, bem como na Revolução Americana (1776), aprovado pela
Assembleia Nacional Constituinte da França revolucionária (1789), contendo dezessete artigos, dentre os quais o artigo 11º, que assim dispunha: “A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei”. Vê-se, pois, que falar, escrever e expressar livremente as ideias passaram à condição de direitos de todo homem e cidadão, o que imprimiria um novo e enfático sentido à noção de educação. O problema é que os homens “livres e iguais” de que fala o artigo 1º desta Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão eram apenas homens, sujeitos masculinos, excluídas as mulheres. E, ainda que a mulher tenha começado a frequentar as escolas, no século XVIII, isso só aconteceu de maneira limitada, em relação à educação mais elementar, de modo que, em plena Modernidade, a educação ainda era excludente e discriminatória.

No Brasil, por exemplo, a primeira lei sobre educação das mulheres surgiu apenas em 1827, permitindo que as mulheres frequentassem as escolas elementares, mas as instituições de ensino mais adiantado lhes eram proibidas. Como foi árduo a Nísia Floresta, a primeira feminista do Brasil e da América Latina, lutar pela educação e elevação da posição social e jurídica da mulher brasileira.

Mundialmente, a inclusão da mulher como titular da maior parte dos direitos que podem dignificar uma pessoa como pessoa só teria início com o movimento pelo sufrágio feminino, um movimento social, político e econômico com o objetivo de estender o direito de votar às mulheres. As mulheres votaram pela primeira vez na história em 1893, na Nova Zelândia. Nos Estados Unidos, votaram em 1920. No Brasil, em 1932, quando foi reconhecido o direito feminino ao voto. E apenas em 1945 a igualdade entre homens e mulheres foi reconhecida em documento internacional, através da Carta das Nações Unidas, que seria sucedida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU), delineando os chamados direitos básicos de todo ser humano.

Todo esse rápido revolvimento da história é para dizer o seguinte: até esse ponto da história da humanidade e do Brasil, EDUCAR foi uma prática excludente e discriminatória, onde homens e mulheres estiveram em polos distintos, separados por uma histórica linha que colocou, de um lado, os titulares do direito à educação – os homens – e, do outro, aquelas que não faziam jus a esse direito – as mulheres. Isso sem incluir, aqui, qualquer reflexão da ordem de outras discriminações e exclusões afetas à educação, como aquelas decorrentes da posição social, econômica, racial, além daquelas que separaram a sanidade da loucura, a integridade da deficiência física, dentre outras.

E mesmo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos tenha pisado o chão da história no meio do século passado, muitos desafios restariam (e ainda restam) pela frente, em especial se pensarmos a realidade específica do Brasil e de outros países cujo processo de democratização só teria início tardiamente, se comparado ao de países que o instituíram com o pós-guerra. A Constituição democrática brasileira só viria em 1988, quase no fechar das cortinas do século XX e, apenas a partir dela, a implantação dos direitos fundamentais, dentre eles o da educação que, no art. 205, recebeu o seguinte tratamento legal: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. A mesma Constituição que, pela primeira vez, definiu, para além da soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político como fundamentos do Estado brasileiro e passou, doravante, a perseguir a realização da democracia.

Você vai continuar afirmando que EDHUCAR está escrito errado, eu pergunto? Consegue perceber, agora, como EDHUCAR é uma reinvenção? Que é a proposta de um novo significado para o verbo (ação), no século XXI? Percebe que o acréscimo do “H” é o acréscimo do (H) UMANO, da pluralidade humana, agora sob uma perspectiva da igualdade e da diversidade nunca antes existente? Percebe que o “H” é o acréscimo dos próprios diferentes e excluídos, que passam a contar, (H) OJE, num presente nunca havido, com acesso à formação e informação, depois de uma história de exclusão? E percebe, ainda, que não haveria letra melhor para promover esse deslocamento e transformação? O “H” é letra muda. Uma letra sem som. Uma letra que por si só já seria a letra da diversidade. A letra dos silenciados. Uma letra nem propriamente consoante, nem propriamente vogal. Uma letra que só faz diferença na palavra para os
que podem lê-la. Ela exige, portanto, como ponto de partida, a eliminação de todo e qualquer tipo de analfabetismo. Ela exige a educação do olhar para ler, reler, interpretar e compreender. Exige que se promova a divulgação do conhecimento, o acesso ao debate, a veiculação das informações, a partilha das conquistas, o auto esclarecimento sobre direitos e, como consequência, a ampliação da cidadania.

EDHUCAR. Escrevo novamente. Escrevo a novidade. Pode ler comigo? Quer conhecer comigo esse novo verbo? Esse projeto? Esse cenário de novas ações? Entre. Leia. Conheça cada uma das cartilhas. Conjugue o novo verbo. Interprete. Perceba o “H”. Descubra mais sobre seus direitos. Descubra mais sobre o seu humano. Descubra o significado de uma educação em direitos humanos.

LUCIANA PIMENTA
Doutora em Direito,
Mestre em Filosofia Social e Política,
Profª de Filosofia do Direito e Hermenêutica e Argumentação Jurídica

Área: Cartilha | Direitos Humanos

Título: Educação em Direitos Humanos

Organizadores: Bernardo G. B. Nogueira, Emerson Luiz de Castro

Editora: Editora Newton Paiva

Ano: 2017

Idioma: Português

Número de páginas: 58

Formato: Impresso e pdf

ISBN: 978-85-98299-70-9